terça-feira, 12 de agosto de 2014

O surdo bilíngue

Procurando fugir da necessidade de optar entre uma língua de base visoumanual – que evidencia a surdez e, portanto, a deficiência e a diferença – e outra da base audioverbal – que reflete a normalidade -, surge uma possibilidade de resolver o conflito: proporcionar a aquisição das duas línguas para o surdo e torna-lo um bilíngue. Para tanto, os principais responsáveis pelos surdos – seus pais- devem possibilitar à criança meios de adquirir tais línguas. Levar o filho para interagir com adultos surdos proficientes em língua de sinais enquanto eles próprios devem fazer aulas para adquirir essa língua e, juntamente, realizar protetização precoce e submeter a criança à terapia fonoaudióloga, a fim de que desenvolva também a fala. Contudo, segue a dúvida: em casa, os pais devem falar ou usar a língua de sinais? Eles são orientados para se comunicar com o filho em língua de sinais, mas também por meio da fala. Dessa forma, encontram um meio termo, misturam as duas línguas. Qual a repercussão disso na aquisição da língua da criança adulta?
O bilinguismo na surdez surgiu na década de 1980. A fundamentação dessa abordagem é o acesso da criança, o mais precocemente possível, à língua de sinais e à linguagem oral. No entanto, ambas não devem ser assimiladas simultaneamente, dada a diferença estrutural entre elas. A língua de sinais (L1, primeira língua) deve ser adquirida por meio da interação entre a criança e o adulto surdo, e a língua na modalidade oral será fornecida à criança pelo adulto ouvinte, surgindo como segunda língua (L2), teoricamente baseada nas habilidades linguísticas já desenvolvidas pela primeira língua. Dessa forma, o surdo pode apresentar um desenvolvimento linguístico-cognitivo paralelo ao verificado na criança ouvinte. Além disso, pode haver interação harmoniosa entre ouvintes e surdos, havendo acesso às duas línguas: a de sinais e a da “comunidade ouvinte” (Moura, 1993).
O bilinguismo inaugura um novo debate na área da surdez: ele defende a primazia de uma língua sobre a outra ou seja , da língua de sinais sobre a língua portuguesa, antes aprendida simultaneamente, na comunicação total, ou isoladamente – a linguagem oral, no oralismo, ou a língua de sinais, quando se afirmava que o surdo não aprenderia jamais a falar. Essa primazia, defendida por muitos autores, tem por base dois argumentos. Primeiro, a presença de um período crucial para a aquisição da linguagem. Segundo, a existência de uma competência inata, pressuposto núcleo duro do paradigma inatista, segundo o qual, para aprender uma língua, bastaria estar imerso em uma comunidade linguística e receber dela inputs linguísticos cruciais.
Há, na proposta bilíngue, uma falta de consenso com relação à aquisição da segunda língua. Alguns autores defendem a ideia de que a língua de sinais deve ser aprendida antes do português, devido à diferença estrutural das duas línguas e visando ao desenvolvimento linguístico e cognitivo do surdo. Outros defendem que as duas línguas devem ser aprendidas simultaneamente. Outros ainda defendem que se deve ensinar apenas a modalidade escrita de língua portuguesa, e não a oral. E, por fim, há aqueles que acreditam que se deve ensinar ao surdo ambas as modalidades do português, o ensino da oralidade podendo ou não ser feito por meio da leitura e da escrita. Essas diferentes propostas são resultado das várias definições de surdo bilíngue. Derivam, pois, do conceito que se adota de bilinguismo e de fato de que a aquisição é concebida como um ato individual, de apropriação que se faz da língua.
Enquanto não se considera que as implicações linguísticas estão relacionadas diretamente às sociolinguísticas, pragmáticas, psicolinguísticas, neolinguísticas, continua-se discutindo as abordagens para a surdez como se elas não surgissem das possibilidades sociocognitivas do surdo em adquirir língua.  Como se o processo fosse o inverso: a abordagem educacional decide que língua o surdo pode/deve usar. Acrescento que isso tem consequências diretas no trabalho terapêutico desenvolvido com os surdos. É por isso que a discussão do bilinguismo na surdez deve ultrapassar o “método bilíngue” e concentrar-se na discussão sobre o funcionamento da(s) língua(s).


Texto retirado do livro de: SANTANA, Ana Paula. Surdez e Linguagem: Aspectos e implicações neolinguísticas. São Paulo: Plexus,2007. 165 p. 

2 comentários:

  1. Realmente Francisca, os pais devem possibilitar à criança meios de adquirir tais línguas, pois, a proposta bilíngue traz uma grande contribuição para o desenvolvimento da criança sendo fundamental, para isso, que as atividades realizadas sejam adaptadas conforme suas necessidades.

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  2. Ótimo Texto.Principalmente por levantar a questão: o funcionamento das línguas. Não sou grande conhecedora, mas, acredito que a necessidade de comunicação fala mais alto e por isso temos a LIBRAS. Se queremos incluir quem deve se adaptar ao que: o surdo ao restante da sociedade ou a sociedade aos surdos??? Obviamente a segunda opção é a válida!

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